segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Sobre as Nuvens


Lia olhava fixamente para o teto naquela madrugada de quarta-feira.  Havia acordado mais cedo que o normal, tivera um sonho estranho e muito bonito. No sonho ela estava cavalgando. Isso por si só não era estranho. Mas ela estava cavalgando no ar.  E o cavalo puxava um balão. No balão, um casal de bailarinos dançava.
Ela apreciava a cavalgada aérea, a paisagem, o vento, sentindo-se completamente livre e feliz. Por vezes olhava para trás para espiar os bailarinos dançando. E depois de certo tempo, à altura em que estavam, a dança era o que estava mais perto dela e era a única coisa que ela poderia observar com atenção. Então Lia decidiu virar-se de costas no cavalo e se deitar sobre ele, apoiando a cabeça em seu pescoço.
Era de se esperar que ela caísse com o balanço da cavalgada, estando deitada e sem nada para segurar firmemente, mas havia um equilíbrio surreal que a impedia de se preocupar com uma possível queda. E ela sempre confiara em cavalos, embora não ficasse tão solta a ponto de se deitar sobre eles enquanto eles correm.
Deitou-se sobre o cavalo como se deitasse sobre um divã, mas não se enganava, acariciava-o sorridente enquanto os observava. O casal dançava lindamente. Penduravam-se pelas bordas, giravam, moviam-se livremente, apesar do pouco espaço. E a dança estava cada vez mais bonita e mais intensa. Eles se olhavam fixamente e dançavam com paixão. Parecia que um só cérebro comandava aquela dança, tão sincronizado era o improviso. Mesmo quando fechavam os olhos.
Lia estava cada vez mais admirada e emocionada. Foram poucos os espetáculos que a fizeram devorar uma cena assim com tanta voracidade. Ela sentia que era uma parte dela que estava ali, e a queria de volta. Queria estar ali. Queria dançar com eles. Queria dançar como eles. Queria alcançar aquela flexibilidade que, somada à força, a permitiria fazer o que quisesse com o seu corpo. E poderia estar nas nuvens, estando onde estivesse.
Chegou um certo ponto em que os movimentos um do outro se completavam tão perfeitamente e seus corpos estavam de tal forma unidos que eles se transformaram, fundindo-se num só corpo. E este novo ser estava de pé, olhando fixamente para Lia, deixando-a sem ar.
Lia acordou, embora não quisesse. Não tinha sido um pesadelo. E ela queria conhecê-lo. Afinal, o que ele era? Ela queria saber se tinha doído transformar-se em um só.
Ela pensou na dança. “É assim que se deve dançar. Os bailarinos devem ter entrosamento. Para ser perfeito, eles devem dançar como se fossem um só.” Ela pensou, “Aliás, o amor também deveria ser assim.”
A essa hora o quarto estava sendo inundado por uma luz alaranjada. O sol estava nascendo. Lia decidiu que era um bom momento para sair e ver esse espetáculo. Sua cama não era a única que a chamava.
Lá fora ela tentou fazer com que a luz solar clareasse mais os seus pensamentos. Tentou se lembrar do rosto do bailarino, o resultado final. Era uma mistura, ela não sabia. Tentou se lembrar da cor dos olhos, que a fitaram com tanta intensidade. Não conseguiu.
Lembrou-se da cor dos cabelos. Eram pretos. Destacavam-se na claridade do céu, das nuvens, da pele. Eram também lisos e volumosos, indo até um pouco acima dos ombros. E, ironicamente, era a única coisa que via com clareza.
Olhando para o céu, ela se lembrou da sensação que era voar em cima de um cavalo. Curiosamente, ela não sonhou com um cavalo alado. “Cavalgar também é bom.”, pensou. E, como a terra era o que ela tinha no momento, resolveu visitar Roxy, a égua que tinha ganhado de sua avó em seu aniversário de 16 anos, e chama-la para uma cavalgada. Estavam juntas há quase dois anos agora.
Lia cumprimentou Roxy acariciando seu pescoço e dando-lhe um beijo no topo da cabeça, que a égua tinha abaixado para cumprimenta-la. “Vamos dar uma volta, minha pequena?”, Lia chamou, embora ela fosse pequena, e não a égua.
Enquanto preparava sua égua para a cavalgada, ela dizia “Tive um sonho lindo hoje, Roxy... Você nunca me deixou cair não é mesmo?”.
“É uma boa égua, mas você sempre cavalgou muito bem.” Lia se virou assustada pela voz. Ela achou que fosse a única com duas pernas ali naquele instante. E quando se virou, ela viu... Um par de olhos – obviamente acompanhados de um corpo, mas ela se fixou nos olhos – que olhavam bem dentro dos seus. E Lia pôde ver a cor deles, que oscilava entre azul e cinza. E ela se lembrou das nuvens, embora as do sonho estivem brancas, e lembrou-se do azul do céu, lá no alto...
Os cabelos não eram negros como os do bailarino (e também como os dela mesma). Aliás, ela sabia, nem era um bailarino que estava ali. Não era um bailarino, mas com certeza era alguém que poderia dançar com ela. Talvez não ali. Talvez não naquele momento. Mas seria fascinante. Como cavalgar sobre as nuvens.

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