Lia olhava fixamente para o teto naquela madrugada de
quarta-feira. Havia acordado mais cedo
que o normal, tivera um sonho estranho e muito bonito. No sonho ela estava
cavalgando. Isso por si só não era estranho. Mas ela estava cavalgando no
ar. E o cavalo puxava um balão. No
balão, um casal de bailarinos dançava.
Ela
apreciava a cavalgada aérea, a paisagem, o vento, sentindo-se completamente
livre e feliz. Por vezes olhava para trás para espiar os bailarinos dançando. E
depois de certo tempo, à altura em que estavam, a dança era o que estava mais
perto dela e era a única coisa que ela poderia observar com atenção. Então Lia
decidiu virar-se de costas no cavalo e se deitar sobre ele, apoiando a cabeça
em seu pescoço.
Era de
se esperar que ela caísse com o balanço da cavalgada, estando deitada e sem
nada para segurar firmemente, mas havia um equilíbrio surreal que a impedia de
se preocupar com uma possível queda. E ela sempre confiara em cavalos, embora
não ficasse tão solta a ponto de se deitar sobre eles enquanto eles correm.
Deitou-se
sobre o cavalo como se deitasse sobre um divã, mas não se enganava,
acariciava-o sorridente enquanto os observava. O casal dançava lindamente.
Penduravam-se pelas bordas, giravam, moviam-se livremente, apesar do pouco
espaço. E a dança estava cada vez mais bonita e mais intensa. Eles se olhavam
fixamente e dançavam com paixão. Parecia que um só cérebro comandava aquela
dança, tão sincronizado era o improviso. Mesmo quando fechavam os olhos.
Lia
estava cada vez mais admirada e emocionada. Foram poucos os espetáculos que a
fizeram devorar uma cena assim com tanta voracidade. Ela sentia que era uma
parte dela que estava ali, e a queria de volta. Queria estar ali. Queria dançar
com eles. Queria dançar como eles. Queria
alcançar aquela flexibilidade que, somada à força, a permitiria fazer o que
quisesse com o seu corpo. E poderia estar nas nuvens, estando onde estivesse.
Chegou
um certo ponto em que os movimentos um do outro se completavam tão
perfeitamente e seus corpos estavam de tal forma unidos que eles se
transformaram, fundindo-se num só corpo. E este novo ser estava de pé, olhando
fixamente para Lia, deixando-a sem ar.
Lia
acordou, embora não quisesse. Não tinha sido um pesadelo. E ela queria
conhecê-lo. Afinal, o que ele era? Ela queria saber se tinha doído
transformar-se em um só.
Ela
pensou na dança. “É assim que se deve dançar. Os bailarinos devem ter
entrosamento. Para ser perfeito, eles devem dançar como se fossem um só.” Ela
pensou, “Aliás, o amor também deveria ser assim.”
A essa
hora o quarto estava sendo inundado por uma luz alaranjada. O sol estava
nascendo. Lia decidiu que era um bom momento para sair e ver esse espetáculo.
Sua cama não era a única que a chamava.
Lá fora
ela tentou fazer com que a luz solar clareasse mais os seus pensamentos. Tentou
se lembrar do rosto do bailarino, o resultado final. Era uma mistura, ela não
sabia. Tentou se lembrar da cor dos olhos, que a fitaram com tanta intensidade.
Não conseguiu.
Lembrou-se
da cor dos cabelos. Eram pretos. Destacavam-se na claridade do céu, das nuvens,
da pele. Eram também lisos e volumosos, indo até um pouco acima dos ombros. E,
ironicamente, era a única coisa que via com clareza.
Olhando
para o céu, ela se lembrou da sensação que era voar em cima de um cavalo.
Curiosamente, ela não sonhou com um cavalo alado. “Cavalgar também é bom.”,
pensou. E, como a terra era o que ela tinha no momento, resolveu visitar Roxy,
a égua que tinha ganhado de sua avó em seu aniversário de 16 anos, e chama-la
para uma cavalgada. Estavam juntas há quase dois anos agora.
Lia
cumprimentou Roxy acariciando seu pescoço e dando-lhe um beijo no topo da
cabeça, que a égua tinha abaixado para cumprimenta-la. “Vamos dar uma volta,
minha pequena?”, Lia chamou, embora ela fosse pequena, e não a égua.
Enquanto
preparava sua égua para a cavalgada, ela dizia “Tive um sonho lindo hoje,
Roxy... Você nunca me deixou cair não é mesmo?”.
“É uma
boa égua, mas você sempre cavalgou muito bem.” Lia se virou assustada pela voz.
Ela achou que fosse a única com duas pernas ali naquele instante. E quando se
virou, ela viu... Um par de olhos – obviamente acompanhados de um corpo, mas
ela se fixou nos olhos – que olhavam bem dentro dos seus. E Lia pôde ver a cor
deles, que oscilava entre azul e cinza. E ela se lembrou das nuvens, embora as
do sonho estivem brancas, e lembrou-se do azul do céu, lá no alto...
Os
cabelos não eram negros como os do bailarino (e também como os dela mesma).
Aliás, ela sabia, nem era um bailarino que estava ali. Não era um bailarino,
mas com certeza era alguém que poderia dançar com ela. Talvez não ali. Talvez
não naquele momento. Mas seria fascinante. Como cavalgar sobre as nuvens.
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